Wednesday, February 07, 2007












O que é a capoeira orgânica?


O que se esconde por baixo da palavra capoeira? Quanto mais os estudos históricos avançam, mais os pesquisadores quebram a cabeça tentando conciliar as manifestações mais diversas e descontínuas que surgem sob esse nome na cultura brasileira. Qual a verdadeira capoeira? A capoeiragem carioca do século passado com suas maltas temíveis que espalhavam terror no Rio de Janeiro, a vadiação baiana com toda sua teatralidade, a dança e o ritmo do frevo em Pernambuco, que nasceram dos “valentões” capoeiristas de lá; ou então a capoeira Regional de mestre Bimba e a capoeira Angola de Pastinha, ambas da época do Estado Novo; ou agora a “capoeira contemporânea” ou “angonal” da década de 90? E como decidir entre a navalha ou o berimbau, as rodas ou as brigas de maltas, o atabaque africano ou o pandeiro mouro, o batuque ou o maculelê? A capoeira é negra? mas e os portugueses e outros estrangeiros presos como capoeiras? E a herança dos índios, pois capoeira não é um termo guarani? A capoeira é africana? mas como então esse negócio de “luta brasileira”? A capoeira era escrava? mas como explicar os “marialvas”, boêmios das elites que se tornaram exímios praticantes? Afinal o que são as capoeiras e os capoeiras, talvez fosse a pergunta melhor.

A capoeira orgânica certamente não é a resposta para essa pergunta. Ela é, ao contrário, uma tentativa de limpeza, de desintoxicação de todas as respostas que hoje se agarram à história da capoeira como uma densa nuvem de mitos e lendas. Não que essa mitologia seja falsa. Ela cumpre sua função histórica de criar as identidades que respondem, em cada época, às necessidades das instituições que se organizam e justificam socialmente a capoeira, mantendo os grupos integrados e sustentando mestres, contra-mestres e professores, muitos deles podendo levar uma vida economicamente digna. Ainda fornece matéria de exportação cultural que, se não rivaliza com a música popular, já é um dos mais importantes itens reconhecidos da identidade nacional no exterior. Mas a capoeira orgânica não quer ser uma mitologia, nem acrescentar novas “tradições inventadas”. Ela não é uma nova modalidade de capoeira, não se pretende mais eficiente ou desenvolvida em matéria de luta como a capoeira Regional, nem quer significar um retorno às suas origens, como a capoeira Angola. Para a capoeira orgânica, no meio dessa névoa de estórias há uma verdade: seja o que for a capoeira ela não pode ser ensinada nem, portanto, aprendida. Ela só pode ser percebida. Percebida no espaço em que cada roda se forma, cada malta ou grupo se reúne, não como uma suposta essência, mas numa invisibilidade concreta, não captada pelo olho cansado das imagens de consumo da publicidade e sim pelos demais sentidos aguçados pelo batuque do atabaque e pelo axé da roda, presente no chão e no ar e sobretudo nas pessoas que naquele dado momento estão ali juntas, nem sabem bem porquê, unidas pelo laço da camaradagem. A essa idéia a capoeira orgânica quer ser fiel.

E não foi essa a idéia que sempre nos passaram os mestres? Por trás de suas falas, às vezes mesmo contra elas, não estavam antes sua movimentação nas rodas e seus gestos fora delas, mais até do que os golpes propriamente ditos e as seqüências que ensinavam? É claro que cada um deles tem sua história de vida, que precisa ser recuperada, sobretudo a do período depois de Bimba e Pastinha, ainda muito mal documentado. Porém, as histórias, que muitos deles têm aos montes, bastando ouvidos pacientes para ouvi-las (escassos em dias que ninguém presta atenção à coisa alguma), devem ser assumidas não como lendas, mas como experiências concretas, nas suas relações com um universo cultural maior, percebido por cada mestre dentro de uma visão particular e que se manifesta principalmente nos detalhes dos pequenos gestos, como o olhar esquivo, o sorriso escondido ou o golpe evitado. Os mestres não são justamente esses que, aonde vão, em cada lugar onde estejam, carregam consigo menos palavras do que o próprio ritmo da capoeira, e que, quando chegam, transformam aquele espaço num terreiro virtual, onde o capoeira, como uma entidade profana, baixa e toma conta do lugar? Não é preciso nem tocar o berimbau, uma vez chegado o mestre, todo o espaço torna-se já uma roda e a capoeira surge não em, mas entre cada um, na troca de um com todos e todos com um, quem já não sentiu isso? E esse isso é capoeira, é capoeiragem.

É para captar esses gestos menores, que desaparecem na multiplicidade de discursos inventados ou não, que a capoeira orgânica surge como prática de movimentação e filosofia de jogo. Percepção e espaço são seus conceitos básicos e o miudinho seu método assistemático. Na verdade, um anti-método, uma forma prática de movimento, que não é uma seqüência, mas é antes uma maneira de se relacionar corporalmente com o espaço através da percepção espontânea. O miudinho é um retorno aos movimentos elementares, básicos do corpo, movimentos de criança não falante, com sua espontaneidade e simplicidade (a criança sempre escolhe os movimentos mais simples e prazerosos) ainda não sujeita aos maquinismos e repressões, egoísmos e vaidades dos adultos e mesmo dos jovens. Não é por a criança saber mais capoeira, mas porque só despojando-se dos movimentos já sistematizados (pela família, pela escola, pela universidade ou pelo trabalho) é que o corpo estará livre para perceber a energia própria que circula quando um espaço é tomado pelo ritmo, não dos instrumentos ou das palmas, mas da troca com o outro, do diálogo entre dois camaradas e da relação com as formas físicas do espaço.

Nada mais equivocado que confundir o miudinho com os movimentos baixos da capoeira de Angola. A proximidade com o chão é casual e o miudinho pode ser jogado tanto no alto quanto em baixo, não há a menor diferença. Para a capoeira orgânica, no entanto, o chão é um companheiro, há uma relação amigável com o solo, seja de cimento concreto, de pedra portuguesa ou sintético, porque é o chão que sustenta o espaço, sustenta a vida e afinal sustenta o capoeira quando leva uma banda. É verdade que a aproximação da Malta da Gávea com os angoleiros influenciou a própria formação do miudinho. Mas é por sua natureza assistemática que o miudinho pode agregar elementos corporais os mais diversos sem se descaracterizar. Pois ele é um processo dinâmico, aberto às influências com as quais estabelece trocas que não permitem que se torne mecânico e previsível. Por isso, não há um movimento certo, um padrão para o miudinho que sirva de espelho para ser copiado, ou uma seqüência que o desenvolva. Para entendê-lo só há uma forma: praticar, praticar, praticar. Assim o mais desequilibrado movimento de um iniciante está inteiramente de acordo com sua filosofia. Já se observou inclusive que alunos treinados em capoeira em outros espaços são os que têm mais dificuldade de praticar o miudinho, porque nesses casos precisam desaprender o que já está sistematizado e é repetido mecanicamente para assumirem uma forma de jogo inteiramente livre. O miudinho não é de fora para dentro mas de dentro para fora, quando o corpo se insere no espaço através da percepção e o espaço então dá a forma para o movimento.

Percepção e espaço vêm sempre juntos, pois o espaço só surge quando percebido e a percepção só é possível em função do espaço. O miudinho está entre os dois, possibilitando que o espaço seja dominado em toda sua virtualidade e a percepção seja aguçada. Assim, não há nada de muito novo no miudinho e, na verdade, ele segue desde sempre o fundamento básico da capoeira: percepção do espaço brasileiro, o de um país conquistado pela selvageria, através do extermínio e do degredo, onde houve a escravidão das senzalas e hoje há as senzalas do desemprego ou do emprego mal remunerado. Somos uns desterrados em nossa própria terra disse um grande pensador brasileiro. Nascida e crescida dentro das condições mais extremas da história brasileira a capoeira é uma arte legítima da sobrevivência numa terra tornada estranha pela violência do desenraizamento. Se ela hoje foi domesticada nas academias, pelos treinamentos sistemáticos e pelas ideologias dominantes, ela ainda guarda, em detalhes às vezes invisíveis, informações imprescindíveis para se enfrentar a batalha pesada e violenta que o cotidiano brasileiro apresenta. Quem tiver percepção que reconheça essa verdade. A capoeira orgânica quer abrir as portas dessa percepção.




II

Quando Manoel dos Reis Machado, mestre Bimba, introduziu os golpes ligados em sua luta Regional baiana, como denominava, muitos viram nisso um descaminho, uma descaracterização da capoeira, pois eram movimentos baseados em lutas estrangeiras, principalmente orientais. Bimba tinha a consciência tranqüila pois não reivindicava a prática de uma antiga e verdadeira capoeira, mas apenas estava tornando uma luta (que para ele era regional da Bahia e não nacional, muito menos de Angola) mais eficiente. É provável que Bimba tenha evitado o nome capoeira por essa prática estar proibida e ser mal-afamada. Para ele, talvez, a questão da verdadeira capoeira nem se colocasse. Ao sistematizar alguns movimentos e criar a sua já mitológica seqüência da cintura desprezada, Bimba estava dando continuidade, talvez sem saber, aos diversos estudos que desde o início do século vinham tentando transformar a capoeira como uma modalidade ginástica ou esportiva genuinamente brasileira. Por sua vez esses estudos, alguns escritos por militares, estavam inseridos numa ideologia nacionalista que reivindicava para a capoeira o status de luta nacional. Nesses textos a capoeira deixava para trás o passado ligado ao crime, à navalha e principalmente ao negro, para se tornar uma expressão de brasilidade espontânea do mulato.

A luta Regional de Bimba caiu como uma luva para os propósitos nacionalistas e disciplinares do Estado Novo e Bimba pôde abrir, com as bençãos do Estado, sua academia e assim iniciar o processo de legitimação social da capoeira. Porém, um outro baiano, mestre (Vicente Ferreira) Pastinha, com um discurso claramente antagônico ao de Bimba, defendeu a origem negra e africana da capoeira (dizia tê-la aprendido de um “velho africano”) e enfatizou a importância de uma ética da malandragem e da brincadeira para a capoeira, em oposição à ética de eficiência e da disciplina da Regional ( Bimba só permitia trabalhadores entre seus alunos e esses não deviam beber nem participar de rodas de rua), aproximando-a assim da “vadiação baiana” que já havia sido descrita por Manoel Querino, estudioso da cultura baiana, desde o início do século. Por outro lado, Pastinha, seguindo Bimba, também abriu uma academia, adotou um uniforme e introduziu a graduação.
A capoeira Regional e a capoeira de Angola formataram aquilo que é conhecido atualmente como capoeira, apesar da capoeira de Angola ter sido eclipsada pelo sucesso estrondoso da Regional sobretudo a partir da década de 60. A Regional passou mesmo a ser sinônimo de capoeira nacionalmente, permanecendo a Angola restrita à Bahia e só alcançando projeção nacional a partir de fins da década de 70 quando o grupo Pelourinho, ligado tradicionalmente à Pastinha, abriu uma academia no Rio de Janeiro através de mestre Moraes. Para o sucesso da Regional, por sua vez, contribuiu decisivamente o surgimento do grupo Senzala no início dos anos 60, no Rio de Janeiro, formado por jovens da classe média da zona sul carioca. Inicialmente, parte dos fundadores desse grupo, como os irmãos Fernando e Gil Cavalcanti de Alburquerque, respectivamente mestres Gato e Gil Velho, não conheciam a capoeira de mestre Bimba, e sim a de mestre Sinhozinho, famoso mestre que dava aulas no Leblon, sem berimbau e sem roda. Outros, como mestre Rafael, haviam passado alguns meses na academia de Bimba. Posteriormente, viagens do grupo à Bahia, permitiram um intercâmbio da capoeira do Senzala com a regional de Bimba, consolidando o estilo do grupo. Graças à dedicação desses mestres fundadores e de outros que se juntaram ao grupo ainda na década de 60 como Peixinho, Garrincha, Sorriso, Preguiça, Brasília e Nestor Capoeira, que passaram a encarar profissionalmente a capoeira, houve um refinamento do método de Bimba resultando na capoeira que se pratica hoje em quase todo o Brasil, conhecida como Regional
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A modelo Regional X Angola se tornou hegemônico no mundo da capoeira e parecia mesmo, pelo menos para os iniciantes, que sempre fôra assim. Apesar das peculiaridades do estilo de cada um – um jogo mais alto, mais rápido e mais aberto na regional e um jogo mais rasteiro, mais lento e mais teatral na angola – estavam presentes, no entanto, os mesmos elementos nos dois: o berimbau, as chulas, o atabaque e o pandeiro, a roda, as palmas. Nenhum desses elementos, segundo informam as pesquisas históricas mais recentes, eram característicos da antiga capoeiragem carioca do século passado. Já a navalha, que era a marca do capoeira de antigamente, ou desapareceu ou se tornou um mero objeto simbólico. Porém, podemos admitir que esses elementos são estranhos à capoeira? Todos eles pertencem a diversas manifestações afins da cultura brasileira, como o batuque, a pernada carioca, o lundu, a briga do pau português, o samba de roda com suas chulas raiadas, as rodas do candomblé e as giras da umbanda, o maculelê, o jongo e até mesmo as cirandas. Como os golpes ligados de Bimba, eles se agregaram ao conjunto do que chamamos hoje capoeira. Sua história é a história de como elementos diferentes da cultura brasileira convergem organicamente para o ritual da capoeira (que se torna ritual pela influência dos outros rituais) e passam a integrá-lo, inclusive como forma de conservar a todos eles nas cidades, pois a capoeira sempre foi basicamente urbana. Se não fossem as chulas cantadas nas rodas talvez muitos cantos folclóricos populares já teriam desaparecido do cenário urbano.

Assim, a capoeira se transforma e ao mesmo tempo se conserva. Ela é uma mistura plástica e não uma forma pura de manifestação cultural. Sua transformação responde às necessidades históricas numa troca dinâmica. Para cada momento e para cada espaço corresponde uma capoeira diferente. Cada situação exige a sua capoeira: ela é luta quando precisa ser luta, dança quando é para ser dançada e brincadeira quando é hora de brincadeira. Apesar de mutante seus elementos fundamentais permanecem, talvez não nos aspectos exteriores, mas nos aspectos invisíveis, nos detalhes ínfimos dos movimentos e dos gestos, no ritmo mais do que nas letras das chulas. O ritual da roda é o motivo agregador, chamador, para que a entidade do capoeira baixe e o espírito da camaradagem aglutine as pessoas numa troca comum, pois sem troca não há jogo, não há capoeira.

No final dos anos 80 os modelos da Regional e da Angola se esgotaram em padrões uniformizados dificultando a troca entre as pessoas e o dinamismo do jogo. Falando não mais a linguagem da nacionalidade, que começava a sair de moda, mas a linguagem do mercado, que exige eficiência padronizada e modelos automatizados, as academias tornaram-se centros de beleza estética mais do que pólos irradiadores de um saber cultural centenário. O individualismo reinante esvaziou os laços de camaradagem e a convivência entre os jogadores tornou-se superficial, mero passatempo. Alguns dos símbolos básicos da capoeira Regional e da Angola reverteram-se contra a própria capoeira: a graduação tornou-se um símbolo da competição na sociedade capitalista, a destreza nos golpes tornou-se motivo para exibicionismo na era da mídia. Confundiu-se a ginga da sobrevivência com a esperteza do dinheiro fácil. Nessa nova fase o espelho tornou-se o instrumento principal da capoeira: todos copiando-se uns aos outros. Como conseqüência da perda de identidade os grandes grupos começaram a se fragmentar em milhares de pequenos grupos, muitos sem a menor referência, e todos contando sua própria história da capoeira partindo de vez o que restava de tradição. Foi nesse momento que surgiu de dentro do velho senzala o embrião daquela que seria a Malta da Gávea que trazia consigo menos um novo discurso ou uma nova história do que um movimento rejuvenescido.



III

Gil Velho foi, junto com seu irmão, mestre Gato, um dos fundadores do grupo Senzala. Ainda na década de 60, Gil Velho abriu um espaço informal de capoeira na PUC onde estudava geografia. No início dos anos 70, mestre Gil se formou e foi obrigado a se afastar do Rio de Janeiro, para trabalhar como geógrafo em pontos remotos do país. Afastou-se também da capoeira, deixando em seu lugar na PUC, mestre Garrincha, um jovem menino de morro, que através da capoeira acabaria tendo a oportunidade de se formar como professor de educação física pela universidade e conquistar a vaga de professor contratado pela PUC para dar aulas de capoeira na matéria disciplinar de educação física.

Para Gil Velho, seriam quase dezoito anos de afastamento da capoeira com visitas esporádicas às rodas de seus antigos companheiros. Nesse ínterim, viajou pela amazônia, pela caatinga e pelos canaviais, ou seja, pelas regiões mais inóspitas do país. Lá descobriu de que nada valiam os livros universitários. Isolado do mundo, em locais às vezes jamais explorados, Gil Velho teve que se virar com instrumentos precários e dentro de ambientes perigosos, onde o menor descuido seria fatal. Descobriu o valor da percepção do espaço como fundamental para a sobrevivência. Sem uma percepção apurada se perdiam detalhes mínimos que podiam custar uma vida. Por mais agressivo que fosse o ambiente havia sempre uma relação que tornava possível a convivência. Todo o espaço tem suas leis e sua lógica, quer dizer, sua gramática. Eis aí portanto a lei da capoeira orgânica que é a mesma da sobrevivência: É preciso saber ler o espaço e interagir com ele. A agressividade surge quando a relação com o espaço é inorgânica e anti-interativa.

Quando Gil Cavalcanti de Alburquerque voltou, em 1988, para PUC como professor de geografia, não pensava em voltar a dar aulas. Seus alunos, porém, sabendo de sua condição de mestre de capoeira, insistiram para que puxasse alguns treinos. Quando afinal aceitou o pedido, Gil Velho não recomeçou de onde havia parado, mas do zero. Fez tábua rasa não da história da capoeira, mas de seus métodos e seqüências. No início os treinos eram mistos de exercícios brutos de tropa de elite do exército( Gil Velho foi paraquedista do exército) com a patifaria dos botequins: não era raro um treino ser interrompido e transferido para o Rainha do Mar, na época ainda administrado pelo famoso “Seu Pires”. Como nos antigos treinos de Sinhozinho não havia nem berimbau nem roda. Os alunos iniciais eram basicamente os do curso de geografia com alguns amigos que foram se chegando. Mais tarde chegaram outros sabe-se lá de onde, atraídos por algum estranho magnetismo. Quem os visse, não pensaria em capoeiristas, mas em malucos. Mas naqueles movimentos simples e originais já estava toda a estrutura do miudinho. E na formação do grupo já estava o embrião da malta com sua estrutura baseada na camaradagem.

As aulas eram na quadra de cimento concreto da PUC, a mesma onde 20 anos antes Gil Velho havia começado a dar aulas. Como o mestre Garrincha ainda era o professor oficial de capoeira da PUC, as aulas de Gil Velho eram feitas à revelia da direção da Universidade e sempre sofreram pressão desta. Não eram permitidas, por exemplo, as luzes acesas na quadra, de modo que as aulas eram na completa escuridão. Nas noites de lua nova não se via coisa alguma. Mas nenhum acidente ocorria, menos pela perícia de seus praticantes do que pelo desenvolvimento da percepção, que ali tinha sua prova especial. Na escuridão completa o conceito de invisibilidade começava a ficar concreto. Havia treinos em que literalmente não se via os movimentos do mestre. Era assim que a capoeira ia sendo percebida mais que aprendida, intuída mais que entendida.

As aulas eram ao ar livre e havia aulas mesmo quando chovia. Era uma questão de honra fazer o treino na chuva. Logo, foram introduzidas as latinhas com fogo, menos para iluminar, do que para compor os quatro elementos: terra, ar, água e fogo. O espaço formava-se com seus elementos primordiais. O miudinho também era o movimento básico para que a percepção fosse desobstruída e o corpo, o orgânico, se relacionasse com o inorgânico do espaço.

Com a troca de experiências com outros mestres, sobretudo com mestre Nestor Capoeira, que assumia os treinos na ausência de Gil Velho, com sua capoeira zen, vários alunos aprenderam a tocar o berimbau, o atabaque e o pandeiro, e a cantar as chulas. Sob a luz do fogo e da lua as rodas se formavam e o ambiente estava pronto para receber a capoeira, cujo ritmo foi tomando conta do espaço naturalmente. O que era apenas um grupo foi se tornando uma malta, pela ligação com o espaço da Gávea, assim como as maltas de antigamente relacionavam-se com sua freguesia.

A Malta da Gávea se formou, assim, como uma reminiscência poética das antigas maltas, enfatizando a importância de ressuscitar uma ética da camaradagem para os dias que correm. Perante a Malta todos se tornam iguais. Foi em nome deste ideal que, desde o início, a graduação e as cordas foram abolidas. O iniciante que chegava era organicamente integrado ao grupo e considerado tão participante quanto quem já estava desde o início. Bastava a participação, que viesse para somar e não apenas para tirar, ou seja, bastava que estivesse aberto para a troca. Nada mais se pedia. Não havia falsos mandamentos, nem hierarquias autoritárias, nem ritos de iniciação, nem necessidade de ficar competindo com seus camaradas.

Foi a partir desses princípios que o grupo manteve a identidade durante mais de quinze anos, numa existência itinerante, nomádica. Devido a diversos problemas, o espaço de convivência mudou de lugar, da PUC para o planetário, do planetário para a PUC novamente, em frente ao laboratório LOTDP, depois para a escola Constructor Sui, com passagens rápidas pela Lagoa e pelo parque Laje. Finalmente, no século XXI passou pela Fundição Progresso e pelo Espaço de Reciclagem Hélio Peregrino, em frente ao Planetário. Cada novo lugar era rapidamente cooptado e captado pelo movimento do miudinho e pela experiência da percepção. Mais de quinhentas pessoas passaram pelo grupo sem que ele tenha perdido sua integridade neste tempo. Entre essas, jogadores de outros grupos, mestres antigos, que trocaram com o grupo suas experiências particulares enriquecendo a Malta da Gávea, que assimilou as informações agregando-as à sua formação e, por sua vez, em troca, contribuindo para rejuvenescer outras visões da capoeira, gente tal como Mestres Camaleão, Chaminé, Arerê, Rogerinho, Urubu e Angolinha. Entre todos vale ressaltar a figura de Mestre Muca que durante mais de um ano ajudou a puxar os treinos. Com seu estilo preciso de capoeira aprendido organicamente como parte indissociável da vida de um jovem crescido em Duque de Caxias, Muca trouxe para a Malta da Gávea uma experiência de capoeira de rua que se adequou inteiramente à filosofia da capoeira orgânica. Com seu falecimento no ano de 2000, o saudoso Muca ficará sempre lembrado como um dos melhores jogadores de seu tempo.

A partir de 2003, com o deslocamento de mestre Gil para Brasília, para trabalhar junto à FUNAI na demarcação de terras indígenas, o grupo Malta da Gávea se dispersou, deixando atrás de si um rastro de experiências que ajudaram a formatar a capoeira que se pratica contemporaneamente, com sua ênfase na liberdade de movimento, na diversidade de linguagens, na confluência de idéias. Através de sua existência, foi resgatada a memória das antigas maltas e recuperada uma forma orgânica de percepção urbana tipicamente carioca.

No centro de tudo, esteve e está a figura de Gil Velho com sua experiência de vida inesgotável, suas idéias contestadoras e inusitadas, suas famosas histórias que conta e reconta com tanta inspiração. Sua força física proverbial não é mais intensa do que sua força espiritual. Com sua famosa batida de atabaque, Gil Velho bombeava o sangue vivo que fazia vibrar o coração da roda. Coração que volta a bater com o ressurgir da Malta Carioca fazendo o mundo dar mais uma volta no teatro eterno da capoeira.

Guilherme “Conde” Preger








Cordão de Ouro
http://www.youtube.com/watch?v=qWb-8pDzxko&feature=related
Mestre Gil Velho


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Não sei o que se sabe sobre certas coisas. Já cheguei ao ponto em que o ponto e virgula se confundem, deixando-me sem saber o que fazer, na roda. É por isto que ando dizendo pros amigos: - segura no cipó mais próximo, porque lá embaixo a onça tá com fome. Em agosto de 2009 aconteceu de tudo um pouco no Rio da zona sul. Teve o 'Festival De Capoeira Vadiação' e o, tradicional, 'Fadiação Entre Amigos'. Fui senzalar e angolar, e, Graças a Deus, não tive que filmar ou fotografar nada. Mas vi e entendi, como alguns mestres se percebem em nossos movimentos. As vezes, nas mais imperceptíveis intenções. Jogando ou apenas brincando, como prefiro me situar,"vamos jogar na manha eu bato você apanha." Fora isto, se voce prefere ser duro, joga com o Gil Velho. O cara bota até esqueleto em pé, mas é teimoso pra cacete, como eu, que sou taurino. Fica querendo apertar nossos neurônios apagados, e, ao faze-lo, encontrar a capoeira dentro de nossas velhas carcaças vazias. Nada mal pra saúde física da musculatura, foda é pra mentalidade atual. Por isto estou avisando, que no chão o bicho pega. Pode ficar dando golpes rodados, mas não largue o seu cipó.
O Rio de Janeiro é um mangue, coberto de "progresso" por todos os lados, mas, ao lado, mora o nada. Nadando. Por isto, prestem atenção, porque vou continuar outra hora...Porque o governo federal está investindo aqui, ao invés de aplicar nas cidades do interior e no campo, nosso rico dinheirinho. Mas não vou brigar com meu mestre, nem com o Lula,la,lá...porque já estou com a Marina Silva. E, jamais esquecerei meus amigos, na vadiação de tanto papo furado, que a tudo devem... Não vadiô no YouTube com Boca-Rica e Bigodinho_ lincados comigo a tanto tempo_ que esqueceram até o zumbido do morcego e do vento provinciano lhes chamando. Bacana este vídeo. Partindo-se em dois, flautando e flutuando, os artistas nada perdem pelos seus caminhos, que nos levam Brasil à fora. Silvando naquelas moitas, das velhas modinhas, rica é nossa fauna de emplumados passarinhos. <<< http://www.youtube.com/watch?v=Zo0uDqWJobA >>> Na meia lua, Garrincha pega mosquito. No ar,
Chapeu de Couro flutuou, pegou. Mas na capoeira a humildade é tudo. Então fique na tua flora, que a Rainha te espera, matutando a miração nativa que avôa. Mas me diga uma coisa:_ cobra tem rabo? E lá fora:_ a onça foi beber agua?

Zé Bahiano, cozinhando para os amigos
http://www.fundacc.com.br/ver_news.asp?id=72
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http://www.youtube.com/watch?v=XvseAOVbr4s&NR=1
&
Conheci o Mestre Zé Bahiano na casa do Mestre Russo,'Centro De Memória Da Roda Livre'_ capoeira de rua. E futura sede do 'Projeto Sócio Cultural Cosmos Capoeira' ; entre Caxias, Belfort Roxo e o Mundão Véio. Zé Bahiano e o Nelson Macumba, famoso ogã da baixada, pareciam estar fazendo carinho quando de leve batiam. A capoeira chegava e o atabaque dobrado recebia. Quem me abriu estas portas, foi meu amigo Gil Velho, que me apresentou ao mundo complexo da capoeira. Acho muito importante, para todos nós, guardar este sentimento de sinceridade. Não vou levar nada comigo quando partir definitivamente. Mas quando aportar em Caraguatatuba, vou com tudo. Fui convidado pelo Mestre e não vou dispensar o convite. Tô indo. Só preciso de alguma grana, mas estou contactando os interessados em boas maneiras e em meus oculos escuros; aqui focando. Gostaria de pintar, por lá, um grande grafite comunitário. Coisas nossas, que só faço para pessoas especiais, vistas nos últimos tempos de capoeiragem, como o Conde ( deste texto lúcido aí de cima ), o Timbalada, o Gato Felix, a Tati, o Garça, o Igor, o Itapoã, o Matinho, o Ferradura, a Juliana , o Lobinho, o Bonezinho, a Carol,
a Renata, o George, o Gibão, o Peninha, o Bruzi, o Lagarticha, o Pé de Boi, toda Malta da Gávea ausente e minha eterna Gávea Vermelha esquecida, que me levaram a ser o que sou. O mais próximo da fugaz verdade, verdadeira....Tem mais, mas depois eu conto; e vou falar sobre os mestres da mandinga. AZ Collector. Agosto de 2009.









1 comment:

Gabi Gusmão said...

muitas lembranças...
percepções foram despertas
encontros visíveis e invisíveis
ecoam

saudades boas
Gabi